Prof. Dr. Francisco Thiago
Silva/SEDF-UNIPROJEÇÃO[1]
O campo do currículo, desde sua gênese
na década de 1900 nos Estados Unidos da América surge como um espaço
ideologizado e palco de interesses que reflete as decisões de quem exerce
autoridade política, cultural e pedagógica para responder às questões como:
quem determina o que tem que ser ensinado? Por quem deve ser ensinado? De que
forma será ensinado? Para quem?
Essa situação é apropriadamente
denominada de “modelo de intromissão burocrática” pelo curriculista espanhol
Gimeno Sacristán (2000). Ocorre que a maioria dos coordenadores e docentes,
sobretudo do nível básico de educação não têm base teórica para dirimir as
formas de organizar o conhecimento, que é justamente o coração do próprio
currículo, então passam a exercer o papel de meros executores das propostas
documentais - tema que já discutimos em pesquisa anterior e que conceituamos
como uma das características do processo de “desprofissionalização docente”
(SILVA, SILVA, 2012) - que se transformam em aulas e que materializam as
decisões do campo burocrático, na maioria dos casos, sujeitos responsáveis pela
administração, nas mais diferentes esferas, que pouco compreendem como se dá a
Organização do Trabalho Pedagógico – OTP (Freitas, 1995).
Assim,
como bem lembra Saviani (2012) a escola passa por um processo de “hipertrofia”,
onde os mais variados temas, impulsionados pela mídia, por aventureiros dos
mais variados campos, principalmente da psicologia, criam produtos e franquias
que são comercializados em forma de palestras, projetos e materiais didáticos a
preços duvidosos, e mais do que nunca, passam a exercer e a ocupar um espaço
curricular disciplinar nos fluxogramas, classificados como as tradicionais
“grades” praticadas pelas instituições de ensino.
De forma mais explícita, a “hipertrofia
da escola” se dá, quando a mesma insere em suas práticas curriculares
inúmeros projetos ligados a temas, que por vezes nem dialogam com a cultura
local ou com o perfil de estudantes atendidos por ela. Geralmente se
materializam em datas comemorativas, plastificadas em grandes eventos que pouco
contribuem para o aprimoramento do cabedal intelectual dos estudantes.
Nossa preocupação central é de que a
transversalização das disciplinas e dos conteúdos clássicos, subsumidos em prol
desses encantamentos, se traduzam no “currículo de turistas” (SANTOMÉ,
1998) ou no “currículo festivo” (SILVA, 2015), expressões máximas da
irresponsabilidade pedagógica, e do improviso precário, que toma os conteúdos
confirmados pela academia, que são objeto de avaliação nos exames admissionais
universitários e de carreira como meros coadjuvantes.
Além disso, temáticas relevantes como
educação das relações raciais, gênero, cultura local, diversidade cultural
acabam ocupando um espaço marginal na prática curricular, travestidos de uma
suposta preocupação em tornar a sociedade mais humana e amorosa, como se esta
escola fosse a do “acolhimento social” em detrimento de outra “do
conhecimento”, essa dualidade perversa já foi denunciada por Libâneo
(2012). Discussões complexas que envolvem o uso de conceitos e teorias das mais
diferentes áreas do conhecimento não podem ser traduzidas em calendários cívicos,
dia “D” ou apenas um evento social festivo. Antes, essas sim, devem ocupar
espaço central no currículo “modelado” e “praticado” (SACRISTÁN,
2000) nas escolas, desde que partam das contribuições acadêmicas e consagradas
no universo da produção do conhecimento humano.
Aliás, como ponderou Young (2007), o
currículo, como “território em disputa” (MOREIRA; SILVA, 2011) não pode
ter como centro gravitacional apenas a cultura, o cotidiano, as pseudo-teorias
e os projetos meramente mercadológicos, que pouco fazem avançar na aquisição do
“conhecimento poderoso”, esse tipo de conhecimento objetivado e
escolarizado deve ser o reflexo da formação inicial e continuada de gestores,
coordenadores e professores que têm a educação como seara laboral, ao
contrário, de empresas e sujeitos que, envaidecidos por suas próprias criações
e estimulados pelo mercado educacional, interferem cada vez mais no “sistema
curricular” (SACRISTÁN, 2000) e impedem que os professores exerçam sua
autonomia intelectual.
Portanto, o currículo não pode ser
campo de aplicação de métodos e produtos descolados da prática social, visto
que, a própria escola e os sujeitos que nela convivem são personagens
historicamente situados que só têm sentido de existir, se for para fazer com
que a relação pedagógica entre estudantes e o conteúdo resultem na aquisição de
conhecimentos significativos que formem sujeitos letrados socialmente e
emancipados em suas tomadas de decisões, ao menos as que envolvam o manuseio
das grandes contribuições teóricas e práticas da humanidade - legitimadas por
teóricos, acadêmicos e professores - que devem ser o núcleo da própria
instituição de ensino.
Referências
Consultadas
FREITAS, Luís Carlos. Crítica da organização do
trabalho pedagógico e da didática. Campinas: SP, Papirus, 1995.
LIBÂNEO, José Carlos. O dualismo perverso da escola pública
brasileira: escola do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento
social para os pobres. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 1, p.
13-28, 2012.
MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa; SILVA,
Tomaz Tadeu da (Org.). Currículo,
cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 2011.
SACRISTÁN, Jose. O currículo: uma reflexão sobre a prática.
3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.
SANTOMÉ, Jurjo Torres.
Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1998.
SAVIANI, Dermeval. Pedagogia
histórico-crítica: primeiras aproximações.
Campinas: Autores Associados, 2012.
SILVA, Francisco Thiago. Currículo Festivo e Educação das Relações Raciais. Rio Grande, Pluscom Editora, 2015.
SILVA, Francisco
Thiago. SILVA, Leda Regina Bittencourt. Currículo
prescrito e trabalho docente: desprofissionalização dos professores na
educação básica do Distrito Federal. Anais do X
Colóquio Sobre Questões Curriculares & VI Colóquio Luso
Brasileiro de Currículo. Belo Horizonte, UFMG, Brasil, 2012.
YOUNG, Michael. Para que servem as escolas? Revista Educ. Soc., Campinas, vol. 28,
n. 101, p. 1287-1302, set./dez. 2007.
[1] Doutor e Mestre em Educação, Currículo
e Formação de Profissionais da Educação pela Universidade de Brasília.
Especialista em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira. Licenciado em
História e Pedagogia. Professor da SEDF desde 2005 e do Centro Universitário
Projeção desde 2014. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa: “Currículo e
Interdisciplinaridade na Formação Docente” (CNPQ). Email: fthiago2002@yahoo.com.br.