Grace Perpetuo - Da Secretaria de Comunicação da UnB
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Emília Silberstein/UnB Agência |
Sérgio entrega a monografia nas mãos do reitor José Geraldo de Sousa Junior |
Os
olhos de Sérgio Reis Ferreira têm um brilho intenso; o sorriso é de
inesperada candura; as mãos evidenciam sofrimentos passados e um
discreto nervosismo. A tentação de enxergá-lo como herói é grande – mas
qualquer tentativa de apreender Sérgio na superfície é imediatamente
frustrada: é preciso muito tempo e generosidade para reler o longo e
árduo caminho que este idiossincrático ex-morador de rua percorreu até
aqui, ao gabinete do magnífico reitor da Universidade de Brasília nesse
mês de novembro de 2012. Foi no primeiro dia de novembro, então, que -
com um sorriso tímido - o mineiro Sérgio enfim pôde entregar nas mãos de
José Geraldo de Sousa Junior a monografia que atesta a conclusão do
curso de Pedagogia iniciado por ele na UnB há seis anos, em 2006.
Incomum – e contundente por sua própria natureza –, o ato de entrega da monografia As dificuldades dos moradores de rua do Distrito Federal de se inserirem por meio da educação formal representou
ao mesmo tempo o triunfo de Sérgio e o da Universidade em si, já que o
ineditismo do caso obrigou a instituição a se desdobrar para manter o
estudante aqui após a surpreendente aprovação no primeiro vestibular de
2006. “A universidade que não lida com isto – que não acompanha esse
aluno proveniente de situação adversa em todas as circunstâncias, até
que complete o seu ciclo – é que fracassa, e não ele”, disse José
Geraldo, em referência à constante ameaça de descontinuidade que pairava
sobre Sérgio durante os anos na UnB.
De fato, para
que o aluno fosse aprovado, fez-se um pacto. O acordo – por meio do qual
se definiu a responsabilidade de cada um – envolveu os diversos atores
cruciais ao processo: o próprio Sérgio, evidentemente; o professor e
orientador Cristiano Alberto Muniz; a assistente social da UnB Lindalva
Leonel; e a decana de Assuntos Comunitários (DAC) Carolina Cássia, por
meio da Diretoria de Desenvolvimento Social (DDS), capiteaneada pela
diretora Maria Terezinha da Silva; entre muitos outros na gestão de José
Geraldo e nas gestões anteriores, de Roberto Aguiar e Timothy
Mulholland.
Institucionalmente, a Universidade
colaborou para a permanência de Sérgio com apoio sob a forma de
alimentação, transporte, assistência social, orientação pedagógica etc.
“A Universidade cumpriu com o seu dever com relação a um aluno em
situação de extrema vulnerabiliade – e talvez o nosso aluno mais
vulnerável tenha sido de fato o Sérgio”, atesta a decana Carolina
Cássia. Ela ressaltou a importância do trabalho da DDS, mas admitiu que,
para lidar com um caso como este, professores e técnicos ainda têm
muito a aprender. A experiência com Sérgio foi uma grande aula. Para a
decana, o ex-morador de rua é uma figura emblemática: “O Sérgio vive a
UnB”.
“De minha parte, tenho muito a agradecer a
toda a equipe; à Universidade como um todo; e a todos os que puderam
viabilizar este momento”, disse Sérgio durante o encontro com o reitor.
“A educação não é só uma preparação para o trabalho, mas especialmente
para a vida. É este o papel da Universidade – e isso ela cumpriu.”
ULTRAPASSAGEM –
“Não estamos aqui em torno do personagem Sérgio – mas sim do sujeito
que, sobretudo, saiu da condição de vítima e trouxe sua vida até aqui,
realizando uma ultrapassagem”, disse o reitor José Geraldo, para quem
Sérgio é “alguém que, mesmo numa situação adversa, confiou”: “Se
chegamos até aqui, é porque ele quis assim”.
O
reitor revelou que vem acompanhando atentamente a trajetória do aluno, e
que sabe das dificuldades que o percurso representou não só do ponto de
vista econômico, mas também nos aspectos subjetivo, social e
intelectual. “Ainda assim, Sérgio nunca tentou me atingir pelo
sentimentalismo”, disse o reitor. “A rua não é mais o seu lugar!”, disse
a Sérgio, que agradeceu: “Obrigado mais uma vez por me fazerem
crescer”.
O ORIENTADOR – Diante do
enorme desafio de levar seu orientando a concluir o curso de Pedagogia, o
orientador de Sérgio, professor Cristiano Alberto Muniz, foi muito além
do que normalmente se espera de um docente nesta função acadêmica. A
gratidão estava evidente no olhar de afeto que Sérgio lançava ao seu
antigo professor durante o encontro no gabinete do reitor.
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Com o professor Cristiano Muniz: muito mais que um orientador |
“Todos
os alunos que já passaram pela Universidade ajudaram a construí-la –
mas no caso de Sérgio isso é ainda mais especial”, disse professor
Cristiano, acrescentando, no entanto – como a decana Carolina Cássia –,
que o caso “revela o quanto ainda estamos despreparados para esta
abertura”. Para orientar Sérgio foi preciso crescer como professor e
como pessoa. “Esta revolta que às vezes aparece em Sérgio é explicável:
ela resulta de uma dimensão subjetiva que só ele pode entender”, disse,
revelando compreensão, afeto e muito respeito pelo ex-orientando.
O
momento de desligamento da Universidade guarda certa tensão para todos
os envolvidos na reinserção social de Sérgio: ao sair da Universidade, o
rompimento do vínculo com a academia guarda uma ameaça velada, mas
evidente. “Ainda não cortamos os laços umbilicais”, revela a diretora do
DDS, Maria Terezinha da Silva. “Se eu deixar de acreditar que um ser
humano pode ser reinserido, tenho de abandonar minha profissão – e eu
acredito, ainda que Sérgio tenha tido altos e baixos, mas nós não
desistimos, e continuamos a não desistir.”
Nesse
sentido, o grupo está apoiando Sérgio na tentativa de resgatar o contato
com uma antiga dona de creche que o acolheu na infância, no Rio de
Janeiro. Agora, um dos sonhos profissionais do formando em Pedagogia é
reabrir a creche em novos moldes. “A Universidade não oferece apenas o
conhecimento de sala de aula, e Sérgio está mais preparado para a vida,
agora”, disse Terezinha.
Todos os presentes
expressaram a confiança em Sérgio neste momento crucial de sua
trajetória. Para encerrar a pequena cerimônia afetiva, a assistente
social Lindalva Leonel – com seu comprometimento, uma das grandes
responsáveis pela permanência de Sérgio na Universidade – preparou uma
apresentação sobre o aluno, ao som de uma versão de Bittersweet
Symphony, da banda britânica The Verve.
A MONOGRAFIA – A monografia As dificuldades dos moradores de rua do Distrito Federal de se inserirem por meio da educação formal pulsa
com a narrativa simples – movida por sua evidente inteligência e por
uma candente sinceridade ao narrar sua trajetória. O trabalho mereceu a
menção máxima, mas que não se avalie haver aí qualquer ranço
paternalista. “A Universidade não passou a mão na cabeça do Sérgio, ele
fez valer este título. Este trabalho é o Sérgio: as fraquezas são fruto
de sua história educacional, mas as conquistas são dele”, frisou
professor Cristiano Muniz. Como não poderia deixar de ser, a defesa da
monografia foi um momento de grande emoção: Sérgio discursou durante 45
minutos e “quase todo mundo chorou”, segundo os presentes.
Dedicada
“a todos os moradores de rua do DF e a todos os que me ajudaram direta e
indiretamente”, a monografia resgata o caso de Sérgio e de outros dois
amigos em situação de igual vulnerabilidade social – um que conseguiu a
inclusão e não mora mais na rua; e outro que, a despeito da grande
capacidade crítica e conhecimento, não consegue entrar na universidade e
ainda mora ao lado do restaurante Piantella, na Asa Sul. Na monografia,
Sérgio faz também uma contundente crítica à Universidade.
“Acredito
que a universidade idealiza o estudante perfeito e se esquece da
complexidade da existência humana, pois quando vem mendigo morador de
rua para dentro da universidade, vem também com estes as doenças, os
vícios, a falta de disciplina e, naturalmente, a dificuldade de se
adequar à rigidez acadêmica. Sendo assim, é a academia que, em um
primeiro momento, tem que se adequar para receber estes estudantes até
que se adaptem à academia. Falo isto por experiência própria, pois tive
muito dificuldade para me adequar aos horários, às regras acadêmicas
escritas e não escritas, a exigência de produção e, principalmente, para
me adequar à cultura acadêmica, ou seja, a maneira de se falar e de se
comportar em grupo”, diz Sérgio em sua monografia.
O
formando comentou com o reitor sobre o árduo esforço por ajustar-se e
aprender a se limitar pelos parâmetros comportamentais que regem a vida
na UnB: “Eu não tinha condições de estar dentro dessa sociedade; tive de
aprender a falar, a esperar, a me vestir, a me adequar à Universidade”,
disse. O professor Cristiano concordou: “De fato, a liberdade inerente
às ruas é um grande obstáculo ao enquadramento destes alunos na
academia”.
A SAGA - As dificuldades
que sempre permearam a vida de Sérgio Reis Ferreira são mais
aterradoras do que se poderia imaginar – e vão dos maus tratos e do
abandono experimentados na primeira infância em Ipatinga, Minas Gerais, à
vida errante de adolescente nos corredores da execrável Fundação
Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) e nas sujas ruas do Rio de
Janeiro, passando pelos anos de sobrevivência na Rodoviária do Plano
Piloto, em Brasília.
“Qual a perspectiva de quem
mora na rua? De quem dorme ao relento, come as sobras dos restaurantes e
consegue um trocado aqui e ali com esmola ou prestação de serviços?
Como mudar a vida dessas pessoas? Sérgio Reis Ferreira, 29 anos,
ex-morador de rua, descobriu um jeito de transformar seu destino.
Resolveu estudar”, escreveu o recém-formado pedagogo em sua monografia.
Em Brasília, acreditava que iria “encontrar com o presidente da
República numa padaria e que ele resolveria os meus problemas”.
“Senti
tudo na pele: frio; não fome, mas vontade de comer; e o fato de estar
privado do mínimo necessário à vida em sociedade”, disse Sérgio,
lembrando que, muitas vezes, guardava os livros sob um bueiro. “Eu me
envergonhava de dizer aos colegas que meu material havia sido roído por
ratos e baratas”, disse, reclamando que, “no Brasil, não há políticas
públicas direcionadas a esta população de rua – não há bebedouros nem
banheiros e as pessoas são obrigadas a buscar locais em que há água
gratuitamente disponível”.
Mas o árduo caminho até a
sala de aula não era feito apenas de percalços físicos – de longas
caminhadas a pé, de banhos no Parque da Cidade e de roupas lavadas no
Lago Paranoá: a “inclusão excludente” de Sérgio na Universidade o fazia
sofrer intensamente, levando-o muitas vezes a abandonar o abrigo da
instituição para sentir-se paradoxalmente acolhido pelas ruas. “Às vezes
a discriminação doía, e eu chorava por saber que eu era o invasor”,
revelou Sérgio.
Há quase três meses, uma fatalidade –
em meio ao mar de outras adversidades – ameaçou impedir a formatura de
Sérgio de forma radical: no dia 28 de agosto de 2012, ao tentar roubar
do pedagogo uma quentinha, outro morador de rua o esfaqueou. A morte
chegou perto, mas, como sempre, Sérgio sobreviveu. “Quanto à agressão
física que quase me levou a óbito, eu somente aprendi uma dura lição:
quando seres humanos ‘invisibilizados’ e silenciados pela sociedade -
como os moradores de rua - lutam desesperadamente, eles utilizam até os
meios mais vis e sorrateiros, no caso, a violência.”
No
encontro com o reitor, Sérgio resumiu a surpreendente e notável
trajetória com uma frase: “Eu não tinha mais nada em que me agarrar – só
tinha a Universidade – e então me agarrei a ela com unhas e dentes”.
Fonte:
Todos os textos e fotos podem ser utilizados e reproduzidos desde que a fonte seja citada. Textos: UnB Agência. Fotos: nome do fotógrafo/UnB Agência.
http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=7314
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